O homem não é nada em si mesmo. Não passa de uma probabilidade infinita. Mas ele é o responsável infinito dessa probabilidade.
Como você dá sentido ao caos que é estar vivo?
Nossa mera existência já é produto desse caos - no sentido de “ser sem sentido” da palavra. No meio do acaso, um espermatozóide encontrou um óvulo e, pronto, surgiu a possibilidade de você. Se tivesse sido outra combinação, um segundo antes ou um segundo depois, não seria você. Diante do caos, as possibilidades são duas: enxergar a vida como um verdadeiro milagre, uma conjunção cósmica de eventos que fizeram com que as coisas acontecessem do jeito que aconteceram; ou então, no extremo oposto, caminhar pela vida achando que nada importa já que nada faz sentido mesmo.
Gosto da visão existencialista da coisa. Quando Kierkegaard, Sartre, Camus e Simone pensaram: tudo bem, a vida é mesmo um produto do caos, ela não tem sentido por si só, mas nós podemos - e devemos - dar sentido a ela. Claro, existem discordâncias entre eles sobre como isso deve ser feito, e eu estou aqui simplificando demais reflexões e estudos super extensos sobre a existência e a essência humana. Mas tudo bem. Gosto dessa visão porque ela coloca no nosso olhar e nas nossas escolhas o poder de ver e dar sentido ao caos.
Tudo depende muito das circunstâncias específicas de cada dia e do nosso estado emocional, não tenho dúvidas. Alguns dias, o nosso copo, além de meio vazio, parece ter claramente uma rachadura que faz com que toda a água comece a vazar. Em outros, ele está certamente meio cheio. E tudo bem, a vida é assim mesmo. Mas um copo é um copo, para o bem ou para o mal. Não quero defender uma visão simplista de fake it till you make it estilo coach que defende que o indivíduo é quem faz a própria realidade - tem gente que não consegue ver o copo meio cheio porque a vida e o sistema são injustos e esvaziam a água de qualquer um. Mas, esclarecidas as ressalvas, me tranquiliza um pouco saber que quem dá ou tira sentido do caos pode ser eu mesma.
Nosso tempo nessa existência é curto e precioso - digo nessa existência porque não descarto exatamente a possibilidade de outras -, e essa é uma daquelas obviedades que a gente esquece com frequência. Não me isento desse esquecimento, diante do caos, não é difícil que a gente deixe de enxergar valor ou sentido naquilo que fazemos e, às vezes, até mesmo na nossa própria existência (se precisar, procure ajuda!).
Mesmo quando nos lembramos, é difícil refletir sobre esse valor. No vai e vem dos dias corridos, nas demandas do trabalho ou dos estudos ou dos filhos ou dos parceiros, nas expectativas externas e internas, no curto tempo de ócio que temos, é muito difícil conseguir parar e pensar sobre o que nos traz sentido - na verdade, partindo da ideia de autonomia existencialista, sobre qual sentido nós criamos. (Vocês não ficam malucos com o poder das palavras de transformar totalmente o que dizemos só com algumas mudanças estruturais? Eu fico muito, mas esse não é o ponto).
Existem pontos de valor que são quase estruturais do ser humano, e entram naquela minha longa reflexão sobre os sentimentos que perpassam a história e que nos colocam em pé de igualdade emocional a alguém que viveu no Egito Antigo ou na Idade Média. O amor, a beleza, a comunidade - são pontos universais. Mas o que me surpreende é como a manifestação deles muda completamente entre as pessoas.
Há quem encontre o amor no ato de cozinhar para quem gosta, ou então quem o veja em um abraço apertado. A beleza pode estar, para uns, na multidão da cidade, e, para outros, na imensidão da floresta. Há quem sinta a comunidade à distância, e quem precisa do encontro físico para se sentir parte de um todo. Todos os mesmos sentimentos, o mesmo quentinho de sentido no coração - mas manifestações tão completamente diferentes.
Tenho percebido nos últimos tempos a importância de refletir sobre essas manifestações, de tentar abrir mais e mais espaço para elas no nosso dia a dia. O caos está sempre aí, e, como eu já disse, é muito fácil se perder e afogar dentro dele. É muito fácil perder o sentido, se sentir desamparado e desiludido - perder o valor que é estar vivo. Mas, quanto mais dessas manifestações a gente pincela nos nossos dias, mais difícil se torna se perder.
É como quando a gente chega em casa de um dia terrível, cansativo e esmagador e tem um prato quentinho de comida esperando a gente, ou então um beijo do cachorro, ou então uma xícara de chá, ou um episódio da série preferida, ou um livro super legal, ou uma conversa com um amigo… São muitas as chances da gente se encontrar, e é importante manter os olhos abertos para não deixar elas passarem batidas.
Ultimamente tenho tentado ver o copo meio cheio, aos trancos e barrancos, porque a vida nem sempre é um morango. E as pinceladas de sentido ajudam demais.
Livros recomendados:
#1 A Tale for the Time Being, Ruth Ozeki
#2 Oração para Desaparecer, Socorro Acioli
#3 Escute as feras, Nastassja Martin