Quando eu tinha uns quinze anos, meu pai me deu para ler um livro chamado “O elogio ao ócio", do Bertrand Russell. Eu nunca cheguei a ler tudo, mas o pouco que eu li ficou para sempre guardado na minha cabeça e, de vez em quando, aparece para me fazer pensar. Basicamente, o livro é uma grande reflexão a favor do não fazer nada, mesmo. Muito antes do burnout e dos retiros wellness entrarem em cena (o livro foi publicado em 1935), Russell conseguia ver claramente os perigos de uma sociedade que colocava o ócio como um dos maiores dos pecados e o trabalho como a maior virtude de todas.
“Quero dizer, com toda a seriedade, que muitos males estão sendo causados ao mundo moderno pela crença na virtude do trabalho, e que o caminho para a felicidade e prosperidade está em uma diminuição organizada do trabalho.” Poderia muito facilmente ser uma frese inspiradora de algum empresário de sucesso a favor de uma jornada mais curta de trabalho, não é mesmo?
Para Russell, a pausa é essencial, e deveria ser tratada não como um pecado ou uma perda de tempo, mas algo produtivo. Sem o ócio, não é possível pensar, refletir, não é possível ultrapassar a comodidade, a ignorância, o contentamento com o pouco.
Tenho pensado muito sobre isso ultimamente, sobre essas partes que ficaram do que eu li quando tinha meus quinze anos. Naquela época, eu ainda não era parte das engrenagens do trabalho, mas já sentia, de alguma forma, esse pavor em relação ao ócio sendo reverberado pelo mundo. Estávamos em 1935, venhamos para 2024.
Já faz quatro anos que o mundo “parou” por conta da pandemia, quatro anos desde que, diante de um caos inédito em sua proporção, todos nos juntamos, demos as mãos e escolhemos acreditar que o mundo sairia dessa bagunça melhor do que entrou. Repensamos prioridades, começamos a cuidar mais dos próximos, percebemos que o ritmo da modernidade estava nos adoecendo. Escolhemos a flexibilidade (e aqui acho importante ressaltar como essa discussão é totalmente elitista ainda, infelizmente).
Pois bem, passamos pelo pior e parece que a cada dia um novo pior aparece. Não vou entrar nos pormenores da minha desesperança em relação à humanidade, mas acho que é inegável que não aprendemos nada ou quase nada - a memória coletiva é curta demais e tão facilmente manipulável que dá vontade de chorar de vez em quando.
2024. Hoje se fala de saúde mental dos funcionários, de jornadas mais curtas de trabalho, de flexibilidade, de pausa. Mas que pausa é essa? Será que ela realmente reflete o ócio elogiado por Russell em 1935?
Vamos me tomar de exemplo (afinal, só posso testemunhar sobre o que vivi). Faço parte do mundo do trabalho, e tenho sorte o suficiente de fazê-lo em um lugar que de fato prioriza a flexibilidade. Em um dia normal, eu saio de casa de manhã, chego na faculdade, assisto algumas aulas, volto para casa, trabalho e, então, no meu tempo de “pausa”, sou capturada pelos novos mecanismos do sistema que, em 1935, explorava as massas nas fábricas, e que, hoje, tem cara de bonzinho e, pior ainda, de entretenimento.
Sem querer bater nessa tecla de novo e de novo (se você acompanha essa newsletter sabe que esse meu assunto preferido), mas eu vou ter que falar das redes sociais.
No começo do ano, por motivos mais pessoais do que qualquer coisa, eu decidi que ia ficar sem redes sociais esse ano. Durou talvez umas três semanas. Minha relação com as redes sociais sempre foi meio estranha, eu sempre senti muito aquela ansiedade que os estudos sobre os efeitos das telas na saúde mental das pessoas sempre descrevem. O problema é que, apesar de eu me sentir muito bem longe das redes, eu também me senti muito longe das pessoas que eu gosto. Minhas amigas da escola que eu quase não vejo mais, minha família que não mora perto de mim - como é que eu ia acompanhar a vida dessas pessoas queridas sem as redes sociais? Infelizmente para mim, já foram os tempos das cartas de quinze páginas para atualizar as pessoas sobre o que tem acontecido.
Voltemos ao meu dia normal: depois das minhas horas de estudo e trabalho, das obrigações que todos nós temos, eu geralmente perco todo o meu tempo (e aqui infelizmente tenho que dizer que perco mesmo, porque nada de positivo sai desse tempo na grande maioria das vezes) sugada pelos feeds e pela falsa sensação de comunidade e troca que faz com que eu sinta que sou amiga próxima de uma pessoa que mora em Nova Iorque e sequer sabe da minha existência.
O meu tempo de “pausa", meu tempo que é só meu, é bombardeado pelo ciclo interminável de estímulos que ao mesmo tempo me dão uma onda de endorfina e me deixam enjoada. Que me faz sentir como se eu fosse demais e uma grande fracassada, como se eu tivesse no caminho certo e como se eu na verdade tivesse que estar em outro lugar fazendo outras coisas. Que eu, com meus vinte e dois anos, estivesse à beira da morte e sem tempo para fazer tudo o que eu quero. (Claro, com o tempo que eu perco vendo foto do filho de uma pessoa que eu nem sei quem é, provavelmente não vou ter tempo mesmo).
Então chegamos ao ócio. Esses “passatempos", essa suposta recompensa pelo tempo de esforço que são as redes sociais e até mesmo o entretenimento “vazio”, não são ócio, mesmo. O ócio é o momento de pausa que faz com que a pessoa se sinta menos conformada, mais reflexiva, não o contrário. É tipo quando você sai do banho e fica deitada de toalha em cima da cama olhando para o teto (eu sempre tenho várias epifanias quando isso acontece).
E eu tenho pensado muito no ócio, porque sinto que não tenho dado espaço suficiente a ele. E também porque tenho me lembrado, nos poucos momentos de pausa real que eu tenho, o quanto ele faz bem. E aí comecei a pensar muito sobre a importância das manualidades, outra parte da existência humana que foi meio que capturada pelas telas, nesse processo de pausa. Isso porque, na maioria das vezes, eu me sinto de fato relaxada e reflexiva quando participo de alguma dessas atividades.
Quando eu paro, pego um papel e uma tinta e desenho qualquer coisa, eu me sinto em ócio. Quando eu faço crochê. Quando eu molho as plantas de casa. Quando é aniversário de alguém e eu faço um cartãozinho para a pessoa. São esses os momentos que me fazem sentir realmente em pausa. E é depois desses momentos que eu me sinto o mais em paz, mais esclarecida, mais calma.
Tem vários estudos por aí que mostram como essas práticas manuais se assemelham de alguma forma à meditação. Elas exigem foco total, atenção e cuidado. Meticulosidade. Você precisa estar envolvido em todos os passos do processo, que tem sempre um começo, um meio e um fim. E um fim que não precisa ser nada - um fim que é simplesmente acabar.
Ao invés de perder meu tempo com o ócio que não é ócio, tenho tentado voltar minha atenção a essas pequenas manualidades. Sem pretenção alguma, não quero virar artista, nem vender blusinha de crochê na Paulista (até porque o objetivo aqui é não monetizar o lazer, outra tendência dos dias atuais que literalmente me dá vontade de chorar), nem ser dona da maior padaria do mundo (apesar de que ter uma padaria pequetita tá na minha lista de coisas que eu queria muito fazer). Sem querer ser “boa", fazendo pelo processo. E tenho percebido o quão melhor eu me sinto nos dias em que eu fico mais distante dessa “pausa” digital e foco no ócio de verdade.
Acho que as pessoas precisam mais disso. E não é culpa delas não conseguir fazê-lo, não é culpa delas se voltar para esse “relaxamento” mais acessível, mais alienador. O mundo é muito difícil, às vezes tudo o que a gente quer é um pouco de alienação. Às vezes a gente não tem tempo de sentar e fazer alguma coisa que toma tempo, a gente chega em casa à noite esgotado e só coloca uma série para sentir que o dia chegou ao fim. Acho isso perigoso, acho isso uma pena.
Como indivíduo, com todos os privilégios que tenho, tenho tentado me afastar dessa pausa que só me deixa mais estressada, ansiosa e, no fim das contas, cansada. E resolvi compartilhar a reflexão. Um elogio ao ócio que faz com que a gente se sinta renovado.
Deixo aqui mais um trecho do Russell, quando ele pensa como seria um mundo no qual as pessoas trabalhassem só quatro horas por dia. (Em 1935!)
“Acima de tudo, haverá felicidade e alegria de viver, ao invés de nervos em frangalhos, fadiga e má digestão. O trabalho exigido será suficiente para tornar o lazer agradável, mas não suficiente para causar exaustão. Uma vez que os homens não ficarão cansados em seu tempo livre, eles não exigirão somente diversões passivas e monótonas. Ao menos um por cento provavelmente devotará o tempo não gasto no trabalho profissional para objetivos de alguma importância pública e, como não dependerão destes objetivos para viver, sua originalidade não será tolhida, e não haverá necessidade de adaptar-se aos padrões estabelecidos pelos velhos mestres.”
Muito importante essa texto. Tenho pensado muito no quanto minha rotina tem me massacrado diariamente, para eu dar conta de tudo que preciso fazer, até o ponto que as coisas que eu gosto de fazer viram quase uma obrigação dentro de uma rotina tão corrida e meticulosamente organizada. Que possamos avançar socialmente na máxima: Trabalhar todos, trabalhar menos e distribuir tudo.